terça-feira, 27 de julho de 2010


Último Canto

conde de um castelo em ruínas

Cantam tão longe que eu nem sei se é dentro,
Se é som mesmo, ou algo mais além do que se sente,
Mas se algo mais é nada, impossível e eu louco ou morto como se espera ser quando....
Cada página nova revestida dos fumos que os olhos inventam
E nada, sempre nada, mesmo que as gotas de água chamem o calor de volta
E façam a pele retalhar-se em pequenos momentos,
A ser memória, de carne, de fora, com o vapor e o cheiro à sombra de uma figueira.
Judas sabia que só à sombra de uma figueira, se pode ignorar o cheiro a negro
Que a corda excreta quando o pescoço não engole o remorso.
Cantam, mas não é canção de gente, é a canção do que nos leva,
Das ruas de longe onde acabam nos comboios para a eternidade.
Se as ruas fossem da gente quando o sol aparece cansado no fim do dia,
Em vez de formigas de asa apressadas para o fim, negras mesmo que no ar,
A tentar fazer pontos no sol, pontos negros que ninguém sente,
Passam e nem uma casa a ser ruínas para trás, convencidos de que os castelos são para sempre,
Quando nem os nomes são eternos.
Acumulam-se pelos paralelos antes da fronteira as beatas de lábios desconhecidos,
Partilhados entre eles em horas perdidas, comidas pelos silvados que cobrem o granito,
Criam o mistério até o rio ser maior que linhas imaginárias.
Nem a primavera ouve esses cantos do inferno, como se o inferno fosse possível mesmo no verão.
A ansiedade dos pássaros vibra na canícula das últimas horas
E mesmo assim não sentem a chegada dos ouvidos do futuro.
Até as paredes surdas neste momento, só olhos de burro fascinados por palácios de papel.
Cantam e sei que nada interessa a não ser o que vejo cantar,
Mesmo que seja a canção de uma embriaguez entre galochas e pêlos púbicos descuidados,
Que nos acolhem da mesma forma, menos perfumada mas sincera.
A sinceridade é uma palavra, mas pode ser muitas palavras,
Poucos o sabem, porque se canta longe, onde o horizonte é nu e ácido,
Além das ruas de longe, à beira do rio dos mortos de joelhos cansados de pedir ao céu
Uma chuva mais purificadora que a água das pias,
Uma chuva que seja linfa nos corpos de alma doente.
Cantam tão longe que me parece ser onde é exclusivamente possível tudo,
Só pode mesmo, apesar de sentir o sistema límbico a ser mais eu que eu.
Se isto é real, é o indicador esquerdo com a sua colecção de cicatrizes,
De quando ainda se tinha medo de morrer quando o sangue se apresentava
E confundia com o seu cheiro enjoativo a ferro e vida.

27.07.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

sexta-feira, 23 de julho de 2010


A Casa Assombrada

contra a vontade, sem motivação ou inspiração


O teu jardim não te espera e as orquídeas de vinte espécies diferentes,
Com a sua beleza humana a ser absorvida pela real.
Tão pouco tempo e o verniz das unhas já de um rosa ridículo e frágil,
Lascado como se fosse um estranho relógio de erosão.
Como consegues abrir os olhos e olhar o vazio para dentro?
Do que gemes se já ninguém te habita? És uma casa assombrada?
Choram por ti as tuas lágrimas, que bem se vê o peso de cinquenta anos
Nas rugas e nos cabelos brancos, bem se vê nas lentes que engordaram, bem se vê...
Será que o cão sente a tua falta ao pé do prato esquecido?
O sol sempre disse que não vale a pena, que amanhã será outro e hoje é nada,
Amanhã já cá ninguém estará dos que anoiteceram o dia com os olhos a fechar.
Agora não te queixas das dores nos dias frios ou da gordura que te distancia do que és dentro,
Agora deixas escorrer a luz por entre os dedos com uma indiferença de cadáver
Na praia com o nariz e as orelhas comidas por cães vadios.
O relógio de parede na sala continua, indiferente, outros suspensos em horas mortas,
Enquanto a vida insiste em ser chamada pelo nome.
Apesar de tudo, a cor do cabelo torna-se sincera.
Nunca imaginaste que um dia, sem ser tua vontade, te ias suicidar.
O corpo é que sabe e é quando lhe apetece e quando não é ele,
Somos nós por inteiro e um mau dia a fechar a ilusão de que nada melhor.
Se soubesses que te ias matar sem o teu consentimento de deus mortal,
Tinhas bebido mais, ficado até mais tarde, fechado os olhos e sentido o corpo todo aberto,
Como se o corpo todo braços que recebem o abraço da vida.
Nunca tiveste os pelos das pernas tão compridos nesta época do ano:
Contam em milímetros a distância do tempo onde te afogas.
Se soubesses que te ias matar tinhas dito mais vezes que sim,
Faltado mais vezes ao que não faz falta e ignorado o que nem te toca de verdade.
E agora? Respondes com o olhar fixo no infinito, um suspiro fora de horas,
O azul que também pode estar morto, mesmo que ainda hajam lágrimas que esperam.
Agora, estás e não és mais quem foste, nem aquela ligeiramente diferente de mais um dia.
Agora, és só o que os outros dizem que foste, mesmo que às vezes pareça que estás,
Mas és tão longe nessa pele que se esquece do toque do sol.
Agora, as orquídeas não te esperam, nem sentem a tua falta,
Continuam floridas enquanto o orvalho as visitar depois da noite onde tu não moras.

23.07.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

segunda-feira, 5 de julho de 2010


A Corrida Dos Invisíveis Antes De Horas


Correm quase invisíveis na sua pressa infeliz,
Já são não sei que horas e por isso atrasados,
Todos eles atrasados, convencidos de que um passo mal dado
Agarra o tempo que se perdeu e se perde, sempre,
Se escoa pelo ralo, passando pelos cabelos que caíram, os que se arrancaram,
Por serem brancos e sinais do tempo que passa,
Pelo ralo, num vortex que se ignora com a pressa nos pés.
Correm e saltam pelos paralelos metálicos e quentes como a borracha,
Deixando um ar desgastado ao dia, apesar de ainda não serem horas de tal,
Mesmo que a luz ainda esteja límpida apesar dos cheiros confusos,
Das horas que já passaram, que já se esqueceram.
Correm e eu não sei para quê, sei que há sempre tempo para lá chegar
E que é sempre demasiado cedo.
Quando o dedo percorre o horário dos comboios até ao fim,
Toca o relógio e já não haverá mais que o último que acaba de partir,
Haverá um amanhã que chegará a tempo, se ainda lá estiver à espera,
Com o vestido de hoje na brisa quente do verão da sua varanda,
A olhar, à espera, do atraso de mais um dia.
Correm e as pernas parecem que se esticam, ficam tão compridas,
Que eles lá em cima, a fazer sombra cá em baixo e umas pernas finas,
Que mal tocam o passeio, que atravessam a rua sem lhe deixar rasto,
Apressados para pousar a chavena de café, ainda quente e já vazia,
Despedem-se com um olá e mal se tocam, nem com os olhos,
Porque a pressa está sempre em frente, sempre em frente,
Como se não houvesse algo mais do que sempre em frente.
Nunca ninguém esteve lá à frente e é daqui que se pode ver isso,
Sempre daqui, que não serve para mais nada a não ser correr e ter pressa,
Para chegar aos cabelos brancos, às rugas, ao cansaço e às dores,
Ambas as dores e outras que julgavamos ser invenções dos que já cá estavam antes de nós,
Porque a gente sempre foi e sempre será gente, com pressa, sempre,
A correr para chegar antes que o jantar arrefeça,
Dormir à pressa antes que a cama aprenda a temperatura do corpo,
Tocar apenas o essencial para um orgasmo e dizer boa noite num silêncio de papel,
Agarra-se a roupa antes de ela cair no chão e já o suor está a secar,
Tudo à pressa, não chegue gente, não acordem os meninos,
Não acabe o tempo que se gasta com a pressa, com passos inúteis para chegar
Onde não interessa, onde há sempre tempo e se ganha a vida, perdendo a vida.
Não sei que sabedoria encerrará o das barbas compridas, sentado na relva do jardim,
Falando com as pombas, olhando os seres invisíveis, de mão estendida,
A pedir um olhar, um pouco de tempo, um alívio para a solidão de uma cidade
Que corre e ainda não são as tantas horas e ainda não chegou o próximo autocarro
Para a próxima paragem e mesmo assim, ofegar na sombra metálica da paragem,
À espera, com o cheiro de suores alheios, à volta, sem donos,
Partilhar o tempo com desconhecidos apressados, acompanhados de sacos, malas e jornais,
Alças de plástico que marcam palmas suadas, o peso de uma vida,
Ovos, pão, bananas, sabão, uma garrafa de vinho para acender a luz
Enquanto entram pela janela gritos dos vizinhos, das sirenes, do sol que se despede
E se vai triste por ninguém o ter sentido na pele, por serem todos invisíveis,
Correndo por entre os fios de luz, sempre pela sombra do seu interior,
Onde só se houve o tic-tac do relógio de parede, na casa vazia, que não espera, está
E ainda não são horas, ainda se escorre, se escoa e os cabelos transparentes no ralo.


05.07.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva