segunda-feira, 17 de maio de 2010


Ruas De Longe


Nunca ninguém me disse que tão longe fosse possível
E apesar da distância, ainda tão em cima de mim,
Que mal me consigo distinguir dos paralelos sujos da rua gasta pelos passos dos anos.
Não sabia que fosse possível uma rua estreita chegar ao futuro das grandes avenidas,
Mantendo o cheiro a peste negra, e as conversas de janela a janela,
As lutas de viola, sem viola, só o som das cordas a cortar o silêncio dos meus olhos.
Nem o rio sabe o que leva, nem eu o que levo dentro e me corre,
Sem parar, quase como se a vida de água, puxada a murros lentos que aceleram
Quando subo para a cegueira dos que passam mais barulhentos
E me acordam para o hoje onde se misturam as muralhas de outras infâncias.
Estive para ficar nas águas escuras, naquela tarde quente até que se cansou,
Até que a cerveja acabou e o último comboio ameaçou partir,
Estive para ficar na escuridão do outro corpo que nem se ofereceu,
Foi eu, mesmo que eu quase para ficar nas águas escuras,
Provocando todos os afogados dos séculos santos, com camisas rotas nos cotovelos
E os joelhos cansados das orações que ninguém ouve debaixo de água.
Se calhar não sabem, mas deus não ouve debaixo de água,
Por isso mergulhem e digam-lhe as verdades que nunca irá ouvir,
Que as ruas não têm palavras suficientes nos brasões dos nossos avós.
A rua logo ali, logo ao fundo desta, ao lado, a acompanhar e nunca a ser a minha,
Quase impossível, não fosse a mão dela na minha, a dizer com um olhar egípcio
Que há vida além da minha vontade de morte, nas ruas quase apagadas a altas horas.
As roupas que passam com almas dentro, lá no fundo, quase duvidosas,
A transpirar um medo que se dispersa nas ruas vazias e contagia quem passa,
Matando a solidão segura, deixando no nariz a ureia persistente dos becos frios
Até a porta se fechar atrás e a chave rodar duas vezes e um puxão.
Um gato atravessa a rua, como no sonho, atravessa dentro, além dos olhos,
Selvagem e impossível na noite de pó e sombras da cidade, patas como os pensamentos,
Sobre a calçada que desce até ao abismo, onde não há senão a presença do futuro.
Imitação, porque tudo imitação, francesa, a fingir que a distância aqui ao lado,
Com mais pó, arquitectura mais cansada, povo aborrecido, com olhos só no que brilha,
Nunca passando o lustro no que envelhece, deixando ir, pela noite fora, até à escuridão absoluta.
Deixo cair umas palavras no silêncio para anunciar a madrugada ao táxistas
Que passam como espectros, abutres quase, em busca de almas que querem cair mortas,
Numa estalagem, numa casa de alterne, no sofá da mulher que não parecia cama suficiente,
Num beco onde espera uma gota de água no inferno, na erva fresca que anoiteceu o rio,
No último comboio que tanto ameaçou que agora vai mesmo,
Na casa de banho do bar onde o álcool o único cheiro na almofada de loiça.
Parece que cada passo dado é para ficar no ontem, com as pedras a fazerem casas vazias,
Janelas pequenas só para se espreitar a ascensão e a queda do império individual,
Acrescentando mais aos ontens que virão até o longe se tornar impossível.

17.05.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva