terça-feira, 28 de setembro de 2010



Palavras


As palavras que me desculpem,

Mas elas é que têm que baixar as calças à minha vontade.

Não estou aqui para lhes satisfazer desejos,

Nem para lhes prestar vassalagem, são pedras até eu disser que vivam.

Elas que me ressuscitem os mortos,

Que me tragam a ilusão de uma proximidade impossível,

Elas que façam de uma noite anos de aventuras,

Desde o misticismo obscuro de quartos bafientos,

Até aos anos loucos a ler poesia entre árvores e multidões,

Apesar de um Sol a nascer mais pequeno do alto de um castelo em ruínas,

Numa das muitas curvas eróticas das montanhas e dos montes em frente,

E gritos quase uivos ao sol, ao deus único e possível.

Palavras que escrevem caminhos que só se viveram por quem os percorreu,

Palavras que não me sobem às costas, que não trago comigo,

Eu é que as vou agarrando até parecer bem,

Até me cansar de as mastigar sozinho.

Sem experiência as palavras são vazias, são só símbolos, sons e ideias

E as ideias nunca mataram ninguém sem mãos para asfixiar os sonhos.

Que sabem as palavras do verde que amanhece nas vísceras da história da humanidade,

Que sabem dos olhos que se comovem com o vento quente

Que traz o cheiro fresco do dia jovem?

Sabem o que eu lhes conto, apenas isso e tomam a forma que eu lhes der,

Baixam os olhos quando vêem os sentidos passar e esperam

Que alguém lhes conte o que já passou.


28.09.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva



Acordar Tarde


Já é tarde até para os aromas que o fumo do cigarro engoliu,

Já é tarde mas os sapos continuam de olhos amarelos na luz da Lua

À espera que umas lágrimas chovam na despedida do dia.

É tão tarde que só o roçar dos lençóis, longe onde se adivinham dois corpos,

Onde se adivinham dois pés frios e um esquecimento no sentimento.

O frio não deixa que o ar agarre os cheiros das coisas,

No inverno gelado só cheira a branco, seja tarde ou cedo.

Os vidros do copo cansado espalhados pelo chão,

Que amanhã se acordará se houver vontade e para o fundo de uma memória azeda,

Que hoje já é tarde para levantar derrotas.

Noutro tempo, noutro lugar e já estaria a regressar o dia após uma quase pausa

De poucas horas, onde e quando nunca é tarde e deixa-te estar,

Vale a pena, deixa-te andar, chegarás lá, vem, estou à tua espera.

Agora não que já nem o hipocampo me dá o que sou longe,

Existo só porque penso que sou e a pedra também,

Só porque a penso como um limite e a atiro e a “náusea” a estas horas…

É tarde e Sartre já dorme há anos, há anos a atravessar o que se percorre num fechar de olhos

E é a eternidade, o infinito até nunca mais, num fechar estrábico de olhos: blink e já lá estás.

Por isso é tarde, por isso e por aquilo tudo que deixarás por fazer,

Mesmo que os gatos nunca cheguem a atravessar o caminho e encontrem o sapo

Com olhos a dar um tom amarelo à Lua,

È tarde para tudo o que ficou no dia, tarde para os beijos que ficaram no ar,

Tarde para o último adeus, tarde para mais um gole asfixiante para a insónia,

Tarde para o copo que vai no ar e já se vê em estilhaços, tarde para não pensar em ser pai,

Tarde para não ter dito que sim, ou que não (usem o não com moderação),

Tarde para olhar o céu da noite que arrefece tudo com os olhos fascinados e assustados

Pelo tamanho de tudo que lhes entra dentro.

É tarde e só agora abri os olhos e já cansado, vou adormecer para mais um dia,

Enterrando os sonhos que julgo ter tido como meias verdades só para dentro,

Relembrando os gritos que não se ouviram, só por ser tarde.

Não fosse este aroma a tabaco entranhado desde a língua até à ponta dos dedos,

Tão forte como a morte, tão inocente como outra planta qualquer,

E sentiria no ar o cheiro do canto dos galos, da terra a deixar de arrefecer

E se torna azulada, o cheiro do corpo adormecido com quem não me deitei,

O cheiro da porta do café da esquina a abrir e das vassouras a abrir caminho por entre as beatas,

Da padaria a abrir as portas e do autocarro a atravessar as aldeias, vilas e cidades.

É tão tarde a estas horas que o melhor é nem ser até mais logo.


28.09.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva