segunda-feira, 4 de outubro de 2010



Heróis


aos esquecidos que por cá andam


Tantos segundos passaram que já nem se dá conta da batida dos ponteiros,

Até a passagem dos dias pouco se sente, não fosse o arrefecer e os tons rosa e cinzentos

Com que o céu ameaça a despedida do Sol, já afogado além dos montes longínquos

A uma distância desprezível para quem já percorreu anos e já conquistou rugas.

Tão longe ficou o caminho até Goa, passando por Cairo, Beirute e o regresso de Nice a Lisboa,

De avião, como se uma devolução apressada, hoje na despedida do dia,

Um que ouça, porque as árvores que tombam numa floresta sem ouvidos

Nunca caem de verdade. As tardes que só a enxada acompanha enquanto a terra se abre,

Abrindo-se as memórias quase pesadelos, enquanto o suor escorre pelas pregas dos anos.

Heróis anónimos, esquecidos no mundo esquecido pelos putos de cabelos brancos e gravata,

Pelos putos que são o país, que dizem ser o país, que só por ele alguns lutaram,

Tombados e ignorados, no limbo entre a queda e o embate no chão duro da realidade.

Agora adormecem com um medo ébrio à porta dos cafés que lhes apagam a dor

Do passado, num presente calejado, curtido pelo Sol dos dias. A roupa de Inverno é a de Verão,

Porque o Verão ficou naquelas terras de longe, onde a terra era de outra cor,

Onde até as vacas eram diferentes. O Verão ficou com a parte da alma que lhes arrancaram

E hoje os putos… riem-se dos náufragos, dos heróis das histórias desconhecidas

Que só eles guardam, lá no fundo, nas florestas de plantas estranhas,

Com febres de doenças impossíveis neste lado dos montes.

Beirute é bonito, aquilo é bonito, com os olhos antes da guerra civil,

Passei por lá noutra vida, quando ia a caminho da guerra, numa das três colónias da Índia.

Regressa, sozinho enquanto o dia se despede, com menos anos pela frente,

Com os filhos num país mais pequeno, dizem que melhor:

Como não pode não ser melhor, se não arrancou pedaços de gente à gente a troco do esquecimento?

Aqueles dias tão claros, hoje, quando se confunde uma rapariga que nem é desconhecida com a neta.

Vive-se tanto, para no fim o dia acabar e mais uma manhã num mundo que não se lembra

Da dor, do medo, dos cortes no corpo e na alma, que não nos lê a pele maltratada,

Ou além da pele que antes com outro brilho, não fosse o peso dos anos,

Que a puxa para baixo, onde muitos já não vivem. Passa-se por tanto por tão pouco,

Mas deus é justo e a missa do Domingo é a única esperança, agora que já ninguém se lembra

Que eu fui muito mais que um velhinho de enxada às costas, que fui o país,

Enquanto o dia se despede em tons quentes e frios, de fim e início.


04.10.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva