quinta-feira, 27 de dezembro de 2012



Chelsea Hotel

Estaciono o burro albino e os meus amigos acompanham-me com o fumo de raízes do inferno
Ancestral, entramos numa livraria de uma cidade misturada com sonhos de futuro e memórias
De sótãos esquecidos, onde decorre a apresentação do último livro do poeta que quase
Conheço, ele tão estranho quanto o imagino, demasiado silencioso para a sua química cerebral
Caótica, alguém lhe apresenta o livro com um campo esterilizado em cima da mesa, arrancando
Os pêlos do cu, um a um, e queimando-os cheio de cerimónia e pedantismo com um isqueiro
De prata, as paredes envelhecem e bocejam, as caras confundem-se com as prateleiras cheias
De títulos aborrecidos, arrasto uma cadeira e sento-me ao lado do poeta, como é que é,
Finalmente lhe digo, ele sorri irregularmente e eu respondo-lhe com a minha irregularidade,
O editor mostra-me dentes desaprovadores num olhar de óculos desnecessariamente grossos,
Há cegueiras e cegueiras, criticando com as pupilas a minha indumentária de cigano pobre,
Todo o gangue espalhado pela sala, vestindo o rigor exigido pela festa pagã, no tempo
Em que os caretos se usam para vender tarifários, estou obviamente bêbado, amizade e vinho
Do Porto Tawny como naquela noite de São João e kebab ruivo, estão comigo os maiores
E com eles sou tão grande, peço licença interrompendo o metralhar monótono e insosso
Do cirurgião sem talento além do que se atribui por direito de um deus que queimo
Nos cigarros que deixei de fumar, a fogueira lá fora mantem-me acordado dentro, viro-me para
O poeta, é catarse pá, é vomitar a merda toda que mundo nos faz engolir e tu fazes isso com uma
Arte que te invejo a loucura, sou demasiado tosco, nunca aprendi a lixar a vida, eu é mais fodê-la,
O cirurgião segura mais um pêlo e queima-o, dizendo que estou a repetir tudo o que ele já
Tinha dito, mas como um marinheiro e eu sorrio numa ironia transmontana sem máscara
Grotesca, somos filhos de Juno, a nossa amiga poeta como anda, pergunto-lhe com ar de
Sei que a fodeste, procuro no casaco cheio de bolsos rotos uns trocos que sobraram do vinho
E lá junto dinheiro para o livro, peço-lhe para o autografar com uma dedicatória simples e breve,
O burro está à geada e os amigos já com uma sede inquieta a levantarem cadeiras e a saltarem em cima
Das caras aborrecidas, ele abre o estojo de pintura e pinta a primeira página, este gajo,
Penso com admiração, agradeço-lhe batendo-lhe nas costas e digo-lhe, e tu és bó, saio,
O gangue segue-me e mergulhamos na noite fria até que o cansaço amanheça.


Torre de Dona Chama



27.12.2012



João Bosco da Silva

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012


Prefiro Ficar Em Casa

para TI,

Prefiro ficar em casa, onde é familiar o vazio da tua falta, cada novo lugar onde vou
É uma lembrança da tua ausência, fico triste quando o Sol se põe e leva mais um dia,
Um dia que me acompanhou e me fez companhia enquanto os segundos, um por um,
Me dizem que tu não estás, de manhã, o dia ainda não sabe que sou metade,
E desperta-me com indiferença, procuro-te toda a noite onde me moras, escondes-te
Nas circunvoluções dos meus medos, e só espero que o orvalho me tenha trazido
Palavras tuas, bom dia sem ti são apenas palavras, que me despertam um sorriso triste,
Uma ironia inocente, deus parece-me cada vez mais real, aquele velho perverso
E hipócrita, que só por não existir lhe permito tal desrespeito ao meu coração,
Os meus sentidos esquecem-se de sentir, para se recordarem dos momentos
Em que foram expostos à felicidade que é a tua presença, e acusam-me de não estar,
Porque na verdade não estou e se fechares os olhos, irás ver-me, e mesmo que não
Sintas o meu toque, sentirás a certeza do meu sorriso quando penso no teu,
Não há fome pior que esta, nem distância maior que não estar contigo,
Daí ficar em casa, onde as paredes já sabem que só eu, sem estar, distraído no fundo
De mim a brincar com bolas de sabão, onde dentro, as recordações do que vivi contigo
A fazerem os meus olhos brilharem, como quando era criança, até o silêncio
As rebentar uma atrás da outra, então quebro-o com um suspiro onde procuro
Encontrar um traço do teu cheiro na pele que deixou de me pertencer.

17.12.2012

Turku

João Bosco da Silva

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012


A Farmácia Fechou Na Savana

Entretanto a farmácia fechou e eu ficarei mais um dia sem os comprimidos para a cabeça,
Fiquei a tarde toda de olhos fechados contra o tecto, a ver elefantes atravessando rios exaustos,
Esqueci-me de ter fome, distraído pelas hienas que me atravessam como um caminho,
Ignorando-me num fingimento de desdém que levam no lombo, espero-lhes os gritos
À noite, à noite gritam em todas a línguas e prometem a eternidade entre os dentes
E eu debruço-me sobre a almofada e deixo-me ser devorado por trás, como não deve ser,
Diz-me o catecismo, apesar de nunca tal ter lido a não ser na moral dos outros, que me
Emprestaram até ouvir o burro de Zaratustra a acordar a aldeia para o azul da madrugada,
Naquele Verão onde chovia do tecto frustração líquida e unhas desesperadas na carne faminta,
E agora pergunto-me se valeram a pena aqueles olhos azuis, se os cinzentos foram mesmo
Uma consequência da má disposição do céu, para no fim a verdade estar ali, debaixo de um castanheiro,
Coberta de orvalho, ou a urina de um lobo que por ali passou esquecido de se extinguir
Nos dentes de ferro ou num granizo de chumbo, e os elefantes levam pedaços de mim,
O rio quase um desmaio e árvores trazidas do génesis a confundirem-se com os crocodilos
À espera da estupidez de mais uma sede incauta, fazem-me lembrar a parede da igreja lá da terra,
Onde se sujam almas por fora, entrando-lhes dentro, só o olhar perplexo no reflexo dos olhos
De um babuíno à chuva me desperta para a minha falha, a farmácia já fechou e a serotonina
Continua a ser pouca no rio, mesmo assim as moscas ainda insistem em lamber as lágrimas crónicas
Dos olhos dos órfãos, os hipopótamos não perdoam uma invasão de propriedade
E o castigo é fazer a vida ignorar a tua existência, dizem que lá longe, numa montanha, entre duas
Menores, para a eternidade, um miúdo de cinco anos, toma conta do gado mais seco que
O estrume com que acendem o lume, e eu tenho ciúmes daquele gado, por ter alguém que olhe por ele.

14.12.2012

Turku

João Bosco da Silva

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012


Nas Mãos A Recordação Daquele Beijo
Reminiscências da Rua do Almada

Como escreveu alguém que conheci, escreve-se melhor no cansaço, na amargura dos
Dias que são hojes, e são cinzentos e convencem os olhos de que melhor fechados,
Voltados para o impossível, aquele cinzeiro onde ela apagava o cigarro com um olhar
Esfíngico e eu sem mais nada para lhe oferecer que a minha companhia pessimista,
A minha palidez fria de pensamento e ela toda olhos, lábios que de certeza, não se
Humedeciam sem intenções de me provocar o desconforto existencialista à flor da pele,
Para nada, dizia-lhe, para nada tudo, é melhor ir para casa e adormecer e conservar
A possibilidade de tudo dentro de nós, e hoje só o beijo arrancado ao desespero de muitas
Noites de desejos afogados em portas trancadas e lá fora só o silêncio dos ladrões
Na calçada, o cheiro das prostitutas a chamar ridículo às masturbações bafientas,
Porque para nada, e perder-te seria como arrancar um transplante tolerado, adoptado
Como parte própria, e assim perdi-te sem nunca te ter e os lábios separaram-se
Numa arrancar e um pouco de mim ficou a latejar nos teus dentes, tu toda a latejar
No meu cansaço, nos meus dias de maior sombra, porque tu me conheceste quando
A massa atingia o ponto crítico e se engolia a si mesma com o todo o peso do niilismo,
Lias-me os lábios e sabias que Nietzsche era um muro erguido entre a minha vontade
Real e o teu corpo, lias-me e sabias que as minhas palavras queriam ser antes dedos
A percorrer o teu corpo, a entrar dentro de ti e a sentir a verdade absoluta da tua excitação,
Entretanto os anos passaram, só o cansaço ficou, cada vez maior, tão grande que esmagou
Todos os muros, todos os para nadas, esmagou tudo e agora, que tudo uma polpa
Indefinível e insensível, beijam-se todas as prostitutas e lambem-se todas as calçadas
Em busca de um rasto dos teus lábios, das noites em que não te possuí com a força
Da vontade, para não te perder, e agora nas mãos, só a recordação daquele beijo,
Rodeada pelo vazio do nada em que todas as possibilidades se tornaram neste futuro.

12.12.12

Turku

João Bosco da Silva

domingo, 9 de dezembro de 2012


Arcade

Ela engole e diz que vai para o Inferno, com o sorriso de uma menina travessa que acabou
De arrancar a cabeça à boneca favorita da amiga, as mãos ainda abertas nas minhas nádegas
E eu arrependido da moeda que acabei de perder garganta abaixo, game over, quer se acabe
O jogo todo ou não, sempre a mesma coisa, mas o que nos faz perder mais uma moeda é
O desejo de chegar ao fim, passando por tudo, sobreviver a tudo menos à inevitabilidade,
Não deixar nada por fazer, por dizer, por ver e assim se joga arcade num moleskine,
Desenhando com palavras os olhos de fogo inocente, ajoelhados no chão sujo, rasgando as
Meias como quem abre as nádegas com as mãos e espera uma bênção que livre do tédio,
Com o futuro acabado antes de chegar, a morrer nos sucos gástricos, a implorar, play again,
Eu a procurar uma última moeda nos bolsos e, não chega, não chega mas ela empurra
A promessa de um extra crédito para dentro da sua boca quente, outra vez, que fome esta
E deixo cair mais uma moeda que não existia nos bolsos sempre vazios de esperança,
Na perdição onde me encontro por momentos, onde moramos no momento antes de adormecer,
Ignorando a certeza única do game over, mas a vida é enquanto nos for dada a oportunidade
De continuar a errar, de escolher perder ou não mais uma moeda, sabendo que também
Elas têm o tempo contado, os miúdos ao meu lado batem recordes e eu digo-lhes
Num diálogo de insónia, estive aí, não fiz isso, mas chegarei lá, game over.

Naantali SPA

07.12.2012

João Bosco da Silva

terça-feira, 27 de novembro de 2012


Foder

Muitas vezes fodi, sem foder as donas dos corpos onde entrava, fodia tudo menos a elas,
Fodia o beijo que me foi negado naquela noite fria de Inverno, fodia aquela traição barata
Só para ver como era, fodia aquela que passou no carro com o outro ao lado e não parou,
Nem olhou, sorriu e olhou em frente, fodia todas as negações injustas, todas as promessas
Esquecidas sob esperma mais fresco em hotéis de província, fodia todos os para sempre
E os nunca mais, fodia todos os sorrisos que se apagaram ao meu olhar, todos os lábios
Que me beijaram para não o voltarem a fazer, todos os nomes onde me encontrei para me
Abandonarem no meu cemitério de silêncios e fodia todas as que tinha fodido antes e que
Nunca deixei de certa forma de amar, porque algo de cada uma a quem entrei , entrou em
Mim, mas não se foi como o meu esperma há muito esquecido, lavado e substituído,
Sou todos os nomes, mesmo os que esqueci ou nunca soube e por isso no fim, venho-me
De olhos fechados e todas me parecem envolver no orgasmo, todas as que me foram,
Que me deixaram e as que não quiseram ser, então fica suspensa uma avalanche de vazio
Que se liberta e me esmaga quando a última gota de esperma desaparece dentro delas.

27.11.2012

Turku

João Bosco da Silva

sábado, 24 de novembro de 2012


Parar Para Vomitar

Once I was lost and now I´m nothing.

Tenho cinco anos e a 4l à beira da estrada, os carros são só um som e um rasto de cor,
As memórias que um dia terei, e que tornarão as mãos que as criaram, ridículas e inúteis,
Qualquer coisa como um rio, ali perto, em frente a ponte que atravessarei e para lá dela
Mais estrada, juncos, como os do lameiro do meu avô, mas o ar cheira a pocilgas,
Vomito no charco, e vejo-me refletido, eu todo, o pequeno-almoço, Cerelac, mas eu,
De outra cor, e tenho cinco anos, vomito em cima dos agriões, e vejo-me, exposto,
Isto eu, pergunto-me confuso, entre a má disposição e o espanto, os carros continuam
A ecoar um atrás do outro, olho as mãos, sempre me parecerão do mesmo tamanho,
Também eu, limpo a boca e olho para a minha mãe, que me aconteceu, perguntam os meus olhos,
Esses cada vez mais pequenos, eu ali, no charco, eu as minhas mãos, eu nos olhos da minha mãe
Que me dizem, meu menino, a segurar-me na mão, a levar-me para junto da 4l, um copo de Jói maracujá,
Ainda fresco, bebe, tens sedinha meu menino, e eu não sei bem o que tenho, tinha-me
E isso é tão estranho, sinto-me e neste momento preferia não sentir nada, vontade de sair
De mim, eu ali atrás, naquele charco, entre juncos e longe o lameiro do mau avô, o mundo
Tão grande, tão estranho e eu sempre num lugar, só um, a estrada, o sumo demasiado doce,
Mas fresco, eu tão eu, menos tudo o que me fará hoje eu, todas as memórias, todas as derrotas,
Todas as vezes que me verti, em charcos, em gente, em sonhos que acabei por ser obrigado
A esquecer, crescer é tornar-se cada vez menos com tudo o que não nos é dentro, cada vez mais
Cheios, cada vez mais vazios de nós, e eu só sede, sede de me perder, de engolir o estranho
O demasiado doce, pela estrada fora, a caminho dos lameiros do meu avô, cinco anos,
A porta da 4l fecha-se, mais um rasto de cor a espalhar som pela estrada fora e eu menos eu.

24.11.2012

Turku

João Bosco da Silva

segunda-feira, 19 de novembro de 2012


Epifania Na Aurora Do Fim ou Este Amor Que Me Minto

Este amor que me minto, como se fosse a última oportunidade de redimir todos os fracassos,
Neste que se prepara para me esmagar como todas as ilusões anteriores, como aquela
Mensagem, depois do poema de Caeiro, à minha namorada, perguntava ele, a nossa Sofia dizia ela
Imaginando nos meus sonhos uma casa rural, onde todos os livros que lemos e queríamos ler,
E nós velhos e sábios, com todas as respostas às questões que nasceram sobre as mesas daqueles
Cafés da invicta, a cor do seu cabelo a mesma que esta mentira, que rasgo na pele,
Como se isso a tornasse verdadeiramente sentida, como se podem vestir com os mesmos sonhos,
Se esses sonhos apodrecidos, perdidos, esquecidos nos olhos semicerrados ao parecer que a felicidade,
Mas só a luz da ilusão, ao acordar de um sono demasiado longo, onde a carne em excesso
Fez esquecer o valor das ideias, mas as ideias mentiras, como este amor uma ideia,
Que escrevo em diferentes papéis e assino com diferentes nomes, só a cor do cabelo a mesma,
Entretanto foram lidos outros livros, e a dor que ficou a latejar nos lábios, deixou de se sentir
Por debaixo de outros beijos, todos diferentes, mas as mamas também as mesmas, que a minha
Negligência perdeu, depois de ter vencido a precocidade de um casamento, nas minhas patas
De cão danado, demasiado pequenas para todo o desejo rosado, contra o seu carro velho, à beira
De uma seara de trigo, eu todo tesão e a cegueira de um cérebro afogado em serotonina,
Usando aquele nome que era rodeado por um coração estilizado nas capas dos cadernos
Do sexto ano, como uma masturbação assistida, és o meu segundo, só o meu marido,
E eu com a emoção de uma erecção ao acordar e ela a acreditar que eu mais que esperma
A escorrer dela manchando os bancos de trás, as mesmas mamas contra o meu peito na
Canícula de Agosto, e eu entre as cuequinhas vermelhas dela, que se abrem à frente
E ela impossivelmente húmida naquele calor seco de brisas amarelas, estou tão molhada,
Não acreditando nela própria nem nos meus dedos cheios dela na sua boca, anda já,
E surpreendo-me sempre que me empurram para dentro do seu cu e me esmagam com a vontade
E amo essa mentira, quando me exigem esperma, quero que te venhas na minha boca, ou
Nem me permitem outra opção e drenam-me, demasiados nomes para caberem numa só palavra,
Este amor por retalhos que encontro todos numa única mentira, onde dou os nós que dei
A todos os fracassos, cujos nomes procuro na carne anónima de mais uma noite demasiado fria,
Gostas de me sentir molhada, já nem sei de quem a voz, ecos, procuro encontrar aquela mulher feita
De palavras e que faz nascer poetas e depravados, que vão dar ao mesmo, procuro dar-lhe
Carne
E minto-me nessa carne, dou-lhe o nome que só dentro lhe grito e ignoro a verdadeira cor
Dos seus olhos até me aliviar do desespero de nunca encontrar nada mais do que mentiras
Que me minto, que me faço acreditar como verdades, e provavelmente esta lucidez é
Consequência do sono de anos, do cansaço que não permite asas à imaginação,
São epifanias assim que nos protegem das cordas de estender a roupa e nos trazem o sangue
À carne, à carne que sacode todos os sentimentos, tudo que não lhe saiba a metal, ou sal, ou
Algo verdadeiro e frio, são epifanias assim que nos matam velhos, secos e amargos,
Um dia acordarei e não conseguirei encontrar-lhe o nome e então direi apenas, amor.

16.11.2012

Turku

João Bosco da Silva

terça-feira, 13 de novembro de 2012


Não Pertences Aqui

Aproximo-me da pista de dança e páro a uma distância segura, com a mão cheia de garrafa
Engulo com vontade o desespero e a solidão insensível que dança e transpira e espera e quer carne,
Leite e urina, vejo um par de vinte e um anos, olham para mim, ou as luzes a fazerem-me ver
Olhares onde todos cegos às apalpadelas, uma empurra a outra, a loira a ruiva, a ruiva a loira,
Vamos, tu não pertences aqui, quase me pára o gole que baixava, quem pertence aqui, engulo
Por fim, ao mesmo tempo que alguém é atingido na garganta por uma ejaculação, fruto de um broche
Daqueles sem nome, na casa de banho, és diferente, está bem e vós sois iguais, uma loira e outra ruiva,
Da capital, dizem-me, da vossa capital, afinal de perto, a dois dedos de conversa a cópula nos
Bancos de trás de uma delas, enquanto a outra finge dormitar no banco da frente, começo a achar
Que isto de ser poeta começa a escrever-se pelos poros, os versos lêem-se na forma como levo a garrafa
Aos lábios e o conteúdo adivinha-se no olhar redutor, decompositor, que transforma um ramo
De flores em estrume, não pertences aqui e vejo-me numa canção escrita numa casa de banho,
“Não pertenço aqui”, vejo-me no balanço de Ian Curtis a secar a roupa na cozinha, com ela vestida,
Não pertences aqui e invejo a utilidade de um cão guia, queres vir fumar comigo, a loira tão
Pequenina, frágil e fascinada por sexo e barba a arranhar a sua fragilidade rosada, costumava
Dizer que preferia as ruivas, já não fumo, mas também não pertenço aqui, vamos lá.

20.07.2012

Turku

João Bosco da Silva

segunda-feira, 12 de novembro de 2012


Fruta Favorita II

É como se o sol se tornasse vermelho, um calor pequenino no frio que quer tornar-se dono dos dias,
Morde-se a pele grossa, arranca-se um pedaço amargo como quem despe as evidências que se
Impõem à verdade que se esconde dentro, tenta-se abrir, mas a forma não permite facilidades,
Arranca-se mais um pouco de amargura, fragiliza-se a resistência enquanto se fazem caretas
Pelo esforço, mas não interessa, valerá a pena, outra tentativa, ambas as mãos, uma para cada lado,
Para revelar o centro, por fim cede, abre-se em duas, o sumo doce torna o olho ácido, limpa-se
E já vem com a companhia de umas lágrimas, revelam-se os rubis, geometricamente alinhados
E dispostos, impossivelmente a forma que são por fora, brilhantes, tensos, a explodir de doçura
Encarnada, envolvidos por uma fina pele, mais um pouco de amargura, os dedos já negros,
Peganhentos, e começa então o jogo de paciência, cuidadosamente, levanta-se o véu amarelo
Que envolve a deliciosa recompensa, e com os dedos, removem-se as joias incrustadas, pouco a pouco,
Com suavidade, uma de cada vez se for necessário, aqueles deliciosos botões prontos a explodir
Na língua, com a pressa de um ourives a criar tempo, despe-se mais um lado, e como a sede
Daquele brilho é tanta, antecipam-se umas dentadas delicadas, chupa-se o excesso de força
Que envolve a boca de luxúria, daquela que não se confessa a nenhum padre, e continua-se,
Até se chegar aos últimos grãos, à última pirâmide e aí, sem medo, trinca-se com vontade
E sente-se o prazer crocante entre os dentes, sorve-se o sumo que fica na palidez, tão nua,
Pegam-se nos grão todos e comem-se às colheres cheias, como pequenos momentos,
Frutos da paciência, da perseverança, sem importarem os dedos negros, o amargo, a acidez nos olhos,
Porque no fim, todos os momentos escarlates valeram a pena, porque no fim a recompensa
É um prato cheio de doçura quente e húmida, gosto das mulheres assim, como as romãs.

12.11.2012

Turku

João Bosco da Silva

domingo, 11 de novembro de 2012


Cemitérios Minhotos

para a Mónica,

As únicas palavras que trocámos foram no dia do seu aniversário, ela nas escadas à entrada
Da escola primária com as amigas, um saco de plástico com comida, queres, com um pedaço
De caranguejo na mão, não verde como na praia, cor de laranja, olhei para as amigas entusiasmadas
A trincar o exoesqueleto, não gosto, quando nunca tinha provado, nem sabia se gostava
Ou sequer que aquilo se comia, engoli a minha ignorância e mais uma vez fui vencido pela
Timidez e pela vergonha, gostava dela e não sabia porquê, era bonita e queria prová-la,
Mesmo que não soubesse como, mas eu um estrangeiro ali, como tenho sido sempre,
Com as mãos cheias dos frutos da vergonha e da timidez, vazias, até vir a garrafa, ali todos
Filhos e filhas do mar e eu apaixonado pelas cerejas nas suas orelhas enquanto a procissão passava,
Não gosto, a procissão passou e alguém comeu também as cerejas e lá ia então, com
A vizinha que era diabética e tinha filhos velhíssimos, até andavam na tropa e salvavam de aviões,
Levar flores ao cemitério a nomes que eram só uma pequena cara séria, não se brinca na eternidade,
Não se permitem sorrisos por lá e apesar de não se ter provado antes, não se lhe pode dizer,
Não gosto, portanto arrependo-me do sorriso com o qual não lhe agradeci, porque afinal gostava,
Só ainda não o sabia e poderia, quem sabe, ter-lhe tocado a mão que me estendia aquele pedaço
Cor de laranja de mar, podia ter sentido um pouco daquela carne quente e viva com um nome
Que ainda hoje me desperta na boca o sabor doce daquelas cerejas que não comi, aqueles lábios,
Queres, e eu, não gosto, por ser mais fácil abraçar o vazio que o tamanho de uma possibilidade
E a vizinha lágrimas nos olhos e eu preocupado com o açúcar, deve ser do cheiro do cemitério,
Pensava, a flores podres, água verde, cera queimada e pedras brancas escurecidas pelo fumo
De velas, onde nomes que a carne esquecerá antes delas e caras sérias que sabem tudo aquilo que não sei.

11.11.2012

Turku

João Bosco da Silva

quinta-feira, 8 de novembro de 2012


Húmus E Corações Dissecados

Piso um ouriço e a luz do Sol de Outono revela uma castanha húmida, quase dourada,
Acabada de nascer para acabar entre os meus dentes, inspiro fundo como quem quer absorver
Todo o aroma do húmus fresco e sinto vontade da sua carne quente quente, de a abrir e me
Encontrar dentro dela, além dos espinhos onde me escondo, vontade de me enterrar nela
E renascer, lentamente, eu todo cheio de vida e sombra só o que debaixo de mim, contudo,
Lembro-me dos corações dissecados, onde se procurou o amor, onde mora, onde cresce,
Onde morre, mas além da carne, só o vazio onde antes sangue e o amor se calhar esse vazio,
Uma ausência que dói, como o frio é ausência de calor, e aquece quando presente, será
O próprio calor do sangue, por isso eu hoje um morto por não a ter entre os dentes da minha
Vontade, ao alcance do desejo dos meus olhos, aquela cor de castanha ao Sol de Outono,
Húmida, brilhante, fresca, com o interior acolhedoramente quente, mas agora só um
Coração aberto em cima de uma mesa de metal, revelando-se vazio, expondo toda a sua nudez
Inerte de morte, gritando a verdade muda e impossível para o irmão que ainda bate,
Desencantado, porque tem que ser, porque ela não está, nem o húmus fértil que a traz à sua
Ausência, nem a castanha entre os dentes, só o espaço que ela ocupa em forma de saudade
E entretanto, fecho-me um pouco mais dentro do ouriço, pouso o bisturi e tento encontrá-la
No meu coração aberto, nas pálpebras que fechadas, numa inspiração profunda que procura
O aroma da sua excitação húmida e lavanda, a cor do seu cabelo que persiste na minha palidez cansada.

Turku

08.11.2012

João Bosco da Silva