quarta-feira, 25 de julho de 2012


Um Para Nada

Encerro o cacifo e atravesso o subterrâneo como um zombie, a luz fraca da manhã húmida
E quase quente cega-me, quem dependia de mim ainda por cá, espectros atravessam-me,
Bicicletas também, vermelho, verde, qual para atravessar, esquerdo branco, direito, alcatrão,
Entro na loja quase vazia, só caras de sono, atravesso as inutilidades e compro dois lanches,
Um litro de sumo de toranja, ninguém sorri na caixa, um número dito, um número marcado,
Sumo debaixo do braço ombro contra a porta e rua, a curta distância parece esticar,
O espaço também tem muito de relativo, quando o tempo parece parar, os ponteiros
Fingem mover-se enquanto se olha, voltam-se as costas e eles a recuar, a parar, mais uns
Passos, abre-se a porta, atiram-se com as Chucks para um canto, o saco com os lanches para
Cima da mesa, o litro de sumo de toranja, a vida isto quando ninguém morre, ligo o rádio,
Sintonizo-o no de sempre, às sete e meia só suporto música clássica, vou buscar o livro de
Contos à mesa-de-cabeceira, na cama alguém dorme, conheço-a quando acordada,
Pelo menos é-me familiar, a dormir sempre estranhei toda a gente, até a minha mãe,
De boca aberta, sem palavras, sem sorrisos, parece que só o corpo ali, a gente perdida
Em sabe-se lá que sonhos, pouso o livro do lado esquerdo, do lado direito encho um copo
De sumo, tiro os lanches do saco, pego num com a mão direita, o livro na mão esquerda,
Ia aqui, um pouco de vida, de um morto, à minha vida, neste dia que começa onde eu estou
Mortinho por acabar, mastigo como quem lê, leio como quem engole, empurro mais
Um paragrafo com goles de sumo, não paro, não penso, ainda estou no modo automático,
A engrenagem ainda gira, deixo as palavras ocupar o vazio que me preenche a estas horas,
Na maioria das horas, o estômago aguentará umas horas sem me chatear, poderei dormir
Pelo dia fora, de boca aberta, sem palavras, sem pedidos, sem exigências, sem espectativas,
Sem medos, ilusões, riscos, aborrecimentos, tédio, tédio, não me lembro da última vez em
Que escrevi, para quê, que há para escrever, não consigo acabar o capítulo, fica para amanhã,
Não, amanhã não, quando acordar, hoje já ganhei o dia e perdi-o, provavelmente beberei
Quase tudo na próxima folga e jogarei o resto numa mesa qualquer de blackjack, tento o azar
Para evitar a sorte de alguém querer satisfazer os meus impulsos numa casa de banho de um
Bar underground, cheio de vazios sedentos por alguma cura doentia, fecho o livro, parece uma noite
Qualquer do meu outro, aquele que geralmente colhe material para eu depois escrever nas
Horas vagas em que o tédio não me vence, apenas me acompanha, a música é-me familiar,
Tento lembrar-me, mas deixei de querer saber destas coisas desde os dezassete anos,
Sei que não é Wagner, disso tenho a certeza, coloco o sumo no frigorífico cheio de comida que
Fará parte deste meu corpo nojento, pele e pelo, nem a cabeça me salva, existe um equilíbrio
Entre a minha confusão interior e a imperfeição exterior, tento encontrar-me no que
Torno exterior, atiro com a roupa para cima de uma cadeira, meto os dedos nos olhos
E torno o mundo menos nítido, melhor assim, não compreender por razão orgânica,
A nitidez não ajuda em nada, mas pronto, lavo os dentes, cuspo sangue, as gengivas choram
O que os olhos secam, mijo, de olhos fechados, sabe bem, sinto o calor amarelo passar-me
Rapidamente pela uretra, lembro-me dela, todas as suas caras, começo a sacudir, mais que
Sacudir, ela dorme e isto é apenas um alívio, não quero mais companhia que a dos sonhos,
Desisto, é inútil, quando acordar, quando acordar estarei só, invariavelmente só,
Deito-me e sinto o peso do mundo escorrer para o colchão, isto é um dia na vida de um poeta,
Longo, um desperdício de tempo como é um desperdício de palavras este poema,
Um adiar por algo que valha a pena, um poema que valha a pena, um dia que não seja
Apenas mais um passo para chegar lá, lá, quando lá é lugar nenhum, é nada, dorme.

25.07.2012

Turku

João Bosco da Silva

domingo, 15 de julho de 2012


Quando O Esteves Partiu

Quando ele se foi, o Sol nasceu no dia seguinte, aqueceu-lhe os ossos ausentes,
Iluminou todo o lugar onde ele não estava, o carro pegou à primeira, nenhuma pulseira
Se partiu e as missangas não choveram para o chão da festa, a música não parou nem um minuto,
Continuam a mudar a roupa interior e a tomar duches ao chegar a casa, para evitarem
Observações como, tens um cheiro estranho, que andaste a fazer, e a água a pingar culpa,
Culpa, culpa quando ele se foi, desconhecidos tornam-se os melhores amigos dos amigos
Que afinal só umas cervejas juntos e depois pouco mais, anos apagados porque se cresce,
Diz-se que se cresce e pára-se tão cedo que até dá vontade de morrer logo, antes de erros
Maiores, as vacas são digeridas, a erva é ruminada por outras vacas e os lameiros dizem
Que hoje monte, as vinhas dizem que hoje monte e delas, só uns muros de pedra
Onde tudo ardeu, naquele vale de ninguém que evita o olhar do Sol, desde que ele se foi,
As irmãs também de joelhos, quando o mundo tranca a porta, ou uma parede
Esconde a vergonha esquecida na última garrafa, alguém o lê e diz que ele aquilo que não foi,
Foi aquilo que agora é, uma partida em direcção ao inevitável, ao anoitecer, porque do outro
Lado um novo dia, desde que ele se foi, dizem, as noites são tão escuras como antes,
As ruas da madrugada continuam a ecoar os passos nos paralelos em ruas cansadas de cansaço,
As mulheres continuam a abrir as pernas aos amigos dos maridos e os maridos continuam
A ter erecções quando as amigas das filhas se sentam escandalosamente no sofá onde o futebol
É a única taquicardia da semana, o trabalho continua a parar os relógios, e as manhãs,
São ainda cinco minutos depois de o despertador levar um murro, com um punho cheio
Do dia anterior, desde que ele se foi, isto, isto continua o mesmo como antes de ele cá ter estado.

15.07.2012

Turku

João Bosco da Silva

quinta-feira, 12 de julho de 2012


No Comboio

Uma sande de pão com queijo e uma cerveja, quase dez euros, no vagão-restaurante
Do comboio, o meu avô com uma barriga enorme, amarelíssimo, deitado num sofá velho,
Anda cá, não tenhas medo, tens-me nojo, e eu só pena, vais-me morrer, anda cá, olha uma nota,
Azul de dois contos, uma cerveja e pão com queijo no vagão-restaurante do comboio,
Enquanto um hippie, desses que serão velhos mortos quando os sessenta regressarem,
Toca viola e canta uma merda qualquer que faz a cerveja saber a demasiado algo que
Não o seu sabor familiar, a pena é amarela e às vezes tenta-se beber, uma velha predadora
Assume o seu papel de bêbada, mas não há paciência, não a conheço, não a quero conhecer,
Desculpe, já negligencio demasiadas pessoas na minha vida, não preciso de si, deixe-me estar só,
Só estar, no sofá do meu avô, com uma pena maior do que o meu tamanho nas roupas
Que herdei de algum amigo da família com filhos mais velhos, um primo, a pena a encher
Os dois números acima, o cabelo amarelo de uma adolescente fascinada por trinta e tais anos,
Fala alto, acaba rápido a cerveja, com pressa, é gorda e desesperada por alguém dentro, tenho
Que ir mijar, para o restaurante-vagão, todos a rezar em cima de uma cerveja, a orar à solidão,
Anda, sabe melhor se vieres e lá vão, ele atrás, uma ejaculação no chão da casa de banho do comboio,
A cerveja desce e é como a vida, à minha volta estes corpos celestes, enquanto me consumo
Em direcção a uma dispersão absoluta, dois contos, anda cá, não me tenhas nojo e o punho
Cheio de terra abre-se e o som vazio contra o caixão fechado diz-te adeus, onde tu sem estares estavas,
Eu a chorar, a mão vazia cheia de pena, eu todo medo, nojo, e nem perto de Las Vegas.

Turku-Savonlinna

07.07.2012

João Bosco da Silva

sexta-feira, 6 de julho de 2012


No Fim Será O Sujeito

Aperto-te entre os dedos com todo o meu ridículo, um movimento fétido de quem tenta
E não te sinto, sou-te, como tu és o splash antes dos salpicos nas nádegas, a saliva
Que fica nos lábios a latejar depois do beijo, a dor que sem estímulo nos receptores
Anda às voltas nas circunvoluções, já não é, já não está, vais morrer, vais morrer,
És mas não vives na tinta que serão estas palavras, o vestígio de suor numa página
Abandonada, és o que a luz me faz desejar, sempre menos do que as mãos esperavam
Daquilo que os olhos lhe contaram para dentro do comum, mas deus, sou eu.
Crio num instante uma máquina do tempo, que se diz impossível por paradoxos,
Mas sou um paradoxo, basta-me cheirar a lavanda e imediatamente a solidão
E o desespero de um quarto pequeno numa cidade em ruínas, cheio de sonhos
Que hoje guardo no esquecimento, é melhor, mais vale, a criação é dos que
Se dedicam à demolição e sem querer, deixam fragmentos que dão forma
Ao caos, no fundo tudo fruto da destruição de outra coisa qualquer, mas deus,
Sou eu, mais que uma ideia universal, sou um universo nas minhas ideias individuais,
Nas mãos não tenho nada, mas tenho em mim todo o peso de um mundo
E como se isto interessasse, fecho os olhos, inspiro, o cheiro da erva acabada de cortar,
E sinto-me a ser ruminado nos dentes pacientes das vacas num lameiro
Onde fui pedra, um cão vadio à sombra de um abismo, onde fui a faca que esculpia
Uma fatia de pão, barrava com marmelada, tornava a cortiça nas próprias vacas,
Deus sou eu e faço muito mais que durar, nasci sem saber nada e tudo o pouco
Em que me tornei, não precisou de infinitos nem de eternidades, só da oportunidade
De abrir os olhos e ver-se no universo do qual faz parte e é, no fim será o sujeito.

06.07.2012

Turku

João Bosco da Silva