quarta-feira, 24 de julho de 2013

O Café Nocturno De Van Gogh No Hotel Moscovo

A sala um negativo fotográfico de O Café Nocturno de van Gogh, embebido em melancolia e
A promessa de um frio lancinante além da porta que insiste em abrir-se contentemente
Cuspindo almas envoltas em corpos envoltos em peles ou de uma leveza maior e o interior
Mais cheio de fogo transparente, uma outra aguardente, de batata dizem, e água da que
Passou muito tempo sólida, a mesa ao centro, num lugar onde centro impossível,
Cadeiras estrategicamente colocadas para o reconhecimento fácil do volume nos bolsos
E da braguilha, o recheio dos bares russos, cada um com um ar mais suspeito e vicioso
Do que o outro, uma ambiguidade afogada no ar rosado e escaldado pelo frio e pela vodka,
As putas sentadas nas cadeiras e as putas sentadas nas putas e as putas sentadas no frio
Dos bolsos cheios e no dos bolsos vazios que ao menos uma braguilha farta, ou uma cara
Estrangeira com promessas de plástico lá fora, que já venho, nós uns trocos, tantos para tão
Pouco, um jogo de bilhar apressado, espremido entre a paranóia e a claustrofobia ao sovaco
E perfume demasiado afiado e doce, apontado ao fundo dos colhões do cérebro, tacadas
Concentradas nas pernas que se descruzam em sorrisos e insinuações de puta, ao menos
O interesse directo e a sinceridade de batom vermelho para esborratar os tomates
E roçares brutos de um carinho siberiano, falta o do fato branco, junto à mesa de bilhar,
Mas está o tempo a substituir a sua presença fantasmagórica, neste hotel Moscovo,
Em São Petersburgo, onde as bolas teimam em esticar o tempo e alargar uma conta incerta,
A carteira a tornar-se cada vez mais seca e cresce a vontade de fugir dali ou foder uma daquelas
Putas, vontade escondida da vontade até, que todos católicos, rodeados de uma ortodoxia
Treinada pelos séculos dos tubérculos e dos regimes de outro estômago, os tacos perdem
A sua faculdade recta e parecem um tesão saltitante no meio de uma multidão de praia,
Se ao menos mais de menos trinta graus lá fora, um cigarro que logo um a cravar na língua
Dele e um gajo sem perceber a mostrar-lhe o isqueiro e o maço e ele as duas coisas,
Toma lá, vai lá, não apetece ir fazer companhia ao Dostoievsky que a vida ainda vai em pouca
Miséria e até se saciar, muita beiça desesperada, cansada do dono, muito verso desesperado
Cansado do dono, uma colecção de garrafas vazias, livros consumidos como se escritos por
Alquimistas, quadros quase lambidos, também ali perto no Ermitage, a vontade de levar tudo,
Mais, para deixar a apodrecer entre as lágrimas dos que ficam e o seu esquecimento,
Fica assim, empatamos, vamos sair daqui, mas antes, bebemos uma cerveja Baltika.

24.07.2013

João Bosco da Silva


Coimbra

terça-feira, 23 de julho de 2013

Buthus ibericus

Conta-me outra vez essa história, pela milésima vez, conta-a com todos os pormenores,
Conta-me essa ou outra que também já sei de cor, eu serei todo interesse e se tiver que ser vida
Conta o que quiseres, mas não te cales, nem me faças encontrar na tempestade outras razões
Além de alterações de pressão, baixas de temperatura, a atmosfera ionizada e pronta para
Um pranto que não tem nada a ver com o que me obriga a escrever ou a chorar quando o papel
É outro e a solidão permite extremos, conta-me outra vez essa história, ou aquela outra, tanto faz,
Conta enquanto tento encontrar o teu cheiro na terra quente molhada, a tua companhia num
Copo de vinho, custa-me que o mundo o mesmo e nada igual, antes de ti também tristeza,
Lugares vazios à mesa, mas nunca o teu, o meu mundo nunca antes de ti, por isso que interessa,
Os ciclos passavam por ti e a tua vida uma rotina ao seu ritmo, todos os anos encerravam-se neles
Mesmos e pariam outro, para engordar até lá para Dezembro e tu como quem conta no fim
Do jogo da sueca, contavas sem saberes sequer escrever o teu nome na inutilidade dos papéis,
A tua realidade feita de terra, mau tempo, pedras, madeira, castanhas e vinhas, a verdade
Longe da especulação que queima séculos de suor, mas não tens que escrever nada, conta-me mais uma vez,
Como foi arrancar o espigão de um escorpião com as unhas, como foi vingares-te do Buthus ibericus
E a que sabe a dor da sua picada, conta-me em que pensavas enquanto sangravas na cama
E os teus filhos pequenos não esperavam que tu mais de oitenta um dia, por um pedaço
Tão pequeno de metal, até o homem mais forte é facilmente travado por um pedaço
De algo que pára as engrenagens do relógio da vida, e pára e parou, conta-me pelo menos,
Como foi daquela vez, em que fechaste os olhos e fizeste acreditar a todos, menos a mim, que morreste.

13.07.2013

Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Não Esperes Que O Filtro Te Chupe

A cadência dos versos como os passos incertos na rua que baixa até ao buraco onde todas
As cidades nascem, a Igreja, onde se fundam almas para sujar, as estrelas com todas as
Certezas que se consomem, ao contrário do que se espera, na aurora, no cheiro a pão fresco
E do primeiro café tirado às insónias e da secura de sonhos nos autómatos que são espelhos
Em que não queremos acreditar, que alienados vão todos fora de nós, não sabem nada da
Vida, que é nossa, minha, nunca estiveram em lado nenhum e perdem-se na ausência de
Segundos entre as horas que se ganham para se gastarem na pobreza nutritiva dos programas
De televisão, oferecidos aos porcos, cevados para inchar, tornados lentos e pesados
Para o matadouro lento da engrenagem social, a liberdade é uma palavra como absolvição
Dos pecados, pelas indulgências dos números, no mundo não interessa o que és, mas quanto és,
Tudo o que tens além de ti, faz de ti melhor, maior, aproxima-te de deus tudo o que se cola
A ti, apêndices brilhantes, escada em direcção ao que foi inventado na profundidade das
Circunvoluções, nada se move no fim de mais um verso, alguém sente porventura o que não
Lhe toca os sentidos mais superficiais, a calçada não chega a ser tão suja como os pés seguros
Da grandeza da sua ignorância, olhando em frente com uma miopia de alma, que dá dores
A dentes intolerantes à sinceridade das mensagens subliminares, deitam-se à sombra das
Raízes secas, nem dão pela terra que lhes cobre os olhos, chamam luz à sorte dos favores,
Esqueceram-se dos deveres e dos direitos e cantam à luz das velas, ajoelhados numa hipocrisia
Tão casta, que até às paredes vazias de um claustro tentam vender, como devoção e honra,
Apague-se o cigarro e aceite-se a dádiva fechada numa casa de banho quente de vontade onírica.

Coimbra

17.07.2013


João Bosco da Silva

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Nightmare

de Artie Shaw,

Sento-me à beira Hemingway e escrevo enquanto o copo de mojito desce, escrevo a tentativa
De um sonho que me ficou agarrado à pele da memória confusa, como numa manhã de
Outono, abrir os olhos num quarto dum hostel em Helsínquia, com um sabor estranho a
Saudade nos lábios, um sabor igual ao que fica depois de se tirar a caçadeira da boca,
Quando faltou a coragem para tanta distância, mais um golo, porque a época da caça
Já acabou, e estão longe os ursos e os alces dos países do norte, longe as zebras e as cervejas
Tusker e as alemãs a fingir descuido nos chuveiros públicos, a correrem para as tendas
A rebentar de gemidos que pela noite fora a confundir as hienas, a época da caça acabou,
Agora reúno os pêlos brancos da barba como credenciais em que ninguém acredita
Por falta de rugas, mas com os olhos fechados acordei em Levi, no Verão, sem mosquitos
E eu quase tão estrangeiro como no meu próprio país e à mesa da sala, salta uma de cada lado,
Oferecendo o centro do universo de cada uma, à vez, no sofá a tocadora de kantele ainda vibra
Nas linhas brancas e negras do vestido manchado com esperma, nem tudo nas nádegas
Deliciosamente nórdicas, os púbicos da cor do pecado frustrado das pássaras do sul,
Não direi da minha terra, Hemingway, nem que um cartucho nos cornos que dei e levei,
Porque no fundo todos invertidos a fazer vértices nas circunvoluções hospitalares do cérebro,
Engulo a hortelã como a ausência de tudo o que deixei e afinal tudo o que ficou, o que sou,
Os beijos que nunca mais lhes darei, o futuro que nunca mais lhes iludirei, mesmo que o mesmo
Agora, daquele que se esperava erradamente, não haverá mais olhos mentirosos na família,
Nem a sinceridade dos dentes pequenos, o chumbo purifica tudo, não é, ou os cornos de um
Touro em cima do nosso coração, a foder e a encher de fúria a arena sagrada da nossa
Devoção, tão longe como hoje a Lapónia, a caminho da terra dos Fiordes, onde me senti mais
Em casa do que com bacalhau na boca, um apelido enterrado e a descendência tantas vezes penetrada
E ejaculada no colo do útero próximo, vamos embora que tenho o sangue doce e os mosquitos
Comem-me, e só assim se distingue o produto do sonho do da distância, a presença dos
Mosquitos, o ar das terras de Morfeu tresandam a enxofre, e dizem que o inferno em baixo,
Quando as almofadas sustentam o peso de todos, todas as orgias que a falta de tomates
De olhos abertos não permitem, quando o desejo está lá, no dedo, no gatilho e por cobardia,
Volta-se a acordar, longe de Levi, das alemãs arreganhadas, das tocadoras de kantele e outras
Cordas, do fim da época de caça e do ridículo dos cornos, nas touradas de só toureiros,
Lutando a morte contra animais, quando o chumbo aquece, nas pequenas frustrações do dia,
Como um copo vazio, uma direcção mal tomada, além, antes de se acordar em Levi,
Helsínquia ou na puta que nos pariu a todos, os que não se queixam por falta de traduções de
Merdas como esta, à beira de Hemingway e um copo de mojito, agora hortelã mirrada.

Coimbra

15.07.2013


João Bosco da Silva

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Raspadinha

Raspadinha

Esta será a raspadinha derradeira, a que irá pagar todas aquelas raspadas no fim-de-semana,
Sentados num banco de jardim ao pé do quiosque, às vezes eram às cinco de uma vez e claro,
Poupava-se no gelado, eu e a minha irmã com as unhas, raspávamos e passávamos à mãe para
Conferir, às vezes ela, dá para mais uma, queres ir lá buscar e eu ia, raspava e ficavam rasgadas
No caixote do lixo, agora que arrancaram o quiosque e que já ninguém se senta naquele jardim
Da vila, agora que nos gelados procuro a ausência dos gelados da infância, esta será a raspadinha
Que irá pagar todas as outras, é uma brincadeira isto, é para passar o tempo, dizia a mãe,
Tentando convencer-nos que não era desilusão nos seus olhos, cem escudos já não é mau,
Guarda-os para um gelado que é melhor, mas onde vou agora buscar o prémio se do quiosque
Só resta o que se vê quando os olhos fechados, ou a voz do senhor J quando cheiro as folhas
De um jornal, esta será a raspadinha derradeira e mesmo assim, sei que a vida ficará menos,
Sempre menos, agora que da infância, o único original e verdadeiro, só a distância resta.

Porto- Coimbra (Comboio)

02.07.2013


João Bosco da Silva

Os Dos Delírios Versejantes

Os Dos Delírios Versejantes

“fornicamos
para que alguém nos renda”
Sebastião Alba

O fogo que trazemos dentro, não consome como o dos incêndios, crepita, mas é como o crepitar
Dos montes em Junho, ao Sol, quando as sementes das giestas se abrem lançando à terra quente
As suas promessas de verde, é portanto um fogo que fecunda a aridez seca das folhas em branco,
Esperando com isso levar a esperança aos olhos, ou apenas um despertar de brisa, feita de tudo
Aquilo que sempre nos despejam dentro, como se o nosso fogo daquele que queima, como se a nossa
Alma uma incineradora, por isso não se queixem dos versos poluídos, nem se revoltem com os cogumelos
Venenosos, não esperem de nós o sumo de uma fruta cuja árvore não plantaram, e se crepitamos
É porque nos dão silêncio para isso, mesmo quando é o silêncio de um guardanapo de papel numa
Esplanada cheia no centro de uma cidade a arder em chamas apressadas de carne e olhos só para
Serem ocultados pelas modas que tentam vender pelos passeios ao Sol, isto de rasgarmos o que é
Branco é também uma forma de nos despirmos, de aliviarmos um pouco o corpo dos trapos e da sujidade
Com que nos vestiram o nome, somos o grito escrito das dores que nos dão, das que nos obrigam
Pelos sentidos e assim crepitamos num latejar apagado e somos a semente e o estrume de algo
Que poderá nascer além dos vossos olhos, se houverem olhos que vejam além das palavras.

30.06.2013

Cidões


João Bosco da Silva

Última Noite De São Pedro

Última Noite De São Pedro

Não foi ontem, ontem nem estive lá, porém, alguém me bateu no ombro e quando me voltei,
Desculpa, pensei que eras tu, mas não era, ontem nem estive lá, portanto, a última vez deve
Ter sido num ano há muitos anos antes dos que me cobriram a vontade de cansaço,
Ainda aquela boca no meu dedo, quente, tão húmida e eu com uma curiosidade penetrante,
Eu com ganas de me ocultar no interior escuro de uma cona disposta a esconder toda a minha
Vergonha, disposta a absorver num vórtex de hemisfério norte, toda a incerteza e dar-me
Na sua dinâmica de fluidos, todas as noites numa, sem promessas de suor e gemidos furtivos,
Mas ontem não, fui, eu, nem sede, hipnotizado por todos os fins, esqueci-me de recomeçar e
Não compreendi nem uma lição das que se diz aprender com as derrotas, talvez a lição só uma,
No final serás vencido e nem deus, nem o seu espaço vazio, a ignorância, te poderão salvar
Da tua condenação a ti mesmo, podias ter bebido algo para te acordar, mas não, como seria
Possível se nem lá estive, apenas me escondi no barulho das estrelas, em cima, que com jeitos
Frios ocultam humildemente ou falsamente que são infernos, milhões de infernos num só céu,
Cujas chaves, dizem, são guardadas por um morto que negou o amigo três vezes, por isso
Prefiro fingir acreditar nas três cabeças daquele cão, neste Cérbero de sombras e outros.

Torre de Dona Chama

29.06.2013


João Bosco da Silva

Despejar O Lixo

Despejar O Lixo

Tu, que com promessas impossíveis e portanto de nada, me fizeste perder nesta pedra à deriva no infinito,
Tu que me fizeste acreditar que era aqui, onde estavas, a minha casa, tu que desconheces
Todas a cinzas que tinha guardadas como recordações, porque sou afinal uma fogueira apagada,
Tu que me trancaste dentro do teu coração e continuaste lá fora, onde sempre viveste,
Tu a quem dou a carne e toda a sua vontade, não queiras ser a razão da minha eternidade,
Não me convenças então que a imortalidade se esconde num beijo, já que o meu cepticismo
Se limita aos sonhos dos outros, nos olhos dos outros, deixa-me dormir à minha maneira
E se me quiseres acordar, recolhe antes a tua roupa do chão, não deixes nenhum bilhete
Ou mensagem no espelho, o batom custa a limpar, e ao saíres fecha a porta com a certeza de uma morte.

Torre de Dona Chama

29.06.2013


João Bosco da Silva