quinta-feira, 21 de março de 2013


“Viagem Ao Fim Da Noite”

O bidão onde o cão dormia e se refugiava dos foguetes da festa está vazio, a manta velha conserva
Quase tanto dele como a memória, uns quantos pêlos, faltam os olhos comidos pelos vermes como
O verme que o matou, nem sei se me revolte contra a morte se contra os seus dedos conscientes
E vivos, conheço mil e uma causas que levam um coração a parar, mas nunca compreendi as suas
Razões, é sempre um erro tentar encontrar o que motiva um músculo independente que por teimosia rasga
Os dias com vida e sangue, resta engolir, o sangue, até ficar doente e vomitá-lo depois negro,
Em linhas finas e irregulares que tentam dar um sentido à perdição, bebe-se, fuma-se e fode-se
Sem cuidado ou moderação, encosta-se a vida à parede como se fosse a própria morte, mas esta
Com sugestões atrás da orelha, vai que eu não sou para ti, tu imortal e o bidão vazio à espera
Do medo e do frio, dos olhos no infinito, a culpa disto tudo é dos poetas que tratam a eternidade
Com a mesma familiaridade com que tratam as palavras e a prometem como prometem o amor,
Com o mesmo convencimento que são capazes de trazer a carne toda ao pêlo que ficou agarrado
À memória, mas é mais real o ladrar de um cão assustado pelo quase silêncio da noite de últimos
Candeeiros da vila, que todos os poemas do mundo, a noite chega sempre ao fim,
Mas nem sempre o dia vem para lavar todas as suas sombras.

09.03.2013

Turku

João Bosco da Silva

O Sabor Do Sol

Engolir lentamente o café quente que cai no estômago vazio enquanto a pele sedenta se engasga com
A luz do Sol, a ligeira pressão das hastes dos óculos na têmporas que os anos tornam pálidas,
Sentir o ar fresco da manhã no início da tarde, inspirar fundo até ao alvéolo mais profundo a vida
Que nos morre, sem pensar nisso, e a vida sabe bem, estar sentado a olhar para o horizonte geometricamente
Recortado pela cidade, sem esperar nada das horas que tomarão o lugar desta, sabe bem, os
Sonhos ficaram a incomodar a almofada que ainda cheira a sono e insónias, na vida, só há uma coisa simples
Que dói, a ausência, a morte, dos outros, entretanto o Sol esconde-se atrás do edifício vizinho,
No fundo da chávena só o açúcar a manter entre os cristais a memória do café e uma mosca inerte,
Agarrada à esperança de uma primavera que chegará para lhe varrer o exoesqueleto, um sol que nunca será dela.

Turku

07.03.2013

João Bosco da Silva