segunda-feira, 26 de setembro de 2016

À Espera De Um Poema

Na verdade, não me sai nada, sei que tenho um poema
No saco de plástico do Mercadona, perto de onde a turista
Foi decapitada por um louco, está enterrado na areia
Fecundada por aquele esperma com sabor a Martini
E pelos ruivos de anel de noivado no dedo,
Não sei, se calhar naquele recibo que serviu para limpar
O que os lenços de papel esquecidos não limparam,
Ou no bilhete daquele comboio até ao berço
Que se perdeu em úteros estranhamente familiares,
Geralmente, quando me sento, é sempre com tal vontade
Que sai tudo de rajada, limpo os dedos e puxo guardar,
Raramente o cansaço me inibe o ritmo, é outra coisa,
Como o deslizar de certas canetas nos tira o apetite,
Certos sorrisos nos fazem voltar a cara,
Certas promessas nos fazer rir à gargalhada,
Certos dias de sol só nos pedem cortinas
E rolhas de cortiça semeadas nos vazios que elas deixaram,
Acho que era um poema para uma filha delas,
Sobre fome, distância e como o sal da água do mar
Nos afasta aos poucos da memória uns dos outros,
Mas não me sai nada, vou arrumar as compras,
Pode ser que no fundo do saco, lá encontre aquele verso
No isqueiro novo e acenda mais um dia que já ardeu.

26.09.2016

Turku


João Bosco da Silva
Carta Ao Filho Que Nunca II

Lembras-te daquelas irlandesas velhas que trocavam gelo boca a boca,
Entre desconhecidos, como se fosse sábado à noite num inferno
Se os nazis tivessem ganho, já me perdi, o Johnny Cash também,
O anel de fogo aperta e cada vez mais cremoso, cada vez sei menos da vida,
Na altura pensava que estúpida esta gente toda, comigo lá enfiado,
Hoje penso apenas que vivemos mergulhados em estupidez
E a cada golfada de ar à superfície é uma maldade,
Não queres ter filhos, perguntam, e penso que eu ainda não estou inteiro,
Nunca estarei completo, quanto mais, não conseguiria mentir
A tanta pergunta inocente, olha, é o mundo que é assim, são loucos,
Os outros, ou então sou eu que não consigo vestir o fato que me querem impingir,
Ainda a cerveja não vai a meio filho, ainda tu não te decidiste
Se virás do colhão bom ou do mau e enfias-me assim a lâmina na ignorância,
Em três décadas que passaram num piscar de olhos, devo ter passado anos
De olhos fechados, sabes, escrevi muitas coisas, não exagerei em nada,
Mesmo assim, fecho os olhos, os punhos e parece-me que tudo cheira
A cona, e é tudo fome, a minha, a dos outros, a de outros, a de um por ele próprio,
Esta última a pior, é por isso que verás tantos sozinhos, zangados,
Agarrados a copos, garrafas, lâminas, seringas, putas e sonhos,
Entre uma música do Cash e do Sinatra, lembro-me das irlandesas
Na ilha, quando tinha vinte e um anos e nadava em certezas.

Turku

21.09.2016


João Bosco da Silva