sexta-feira, 14 de abril de 2017

Voyeur

Uma loira acende um cigarro na varanda, passa uma mulher com um colchão na cabeça,
O semáforo dos peões fica verde, ninguém atravessa, começa a cair uma neve desavergonhada,
Um par acaba as cervejas e trocam olhares nervosos de quem não sabe o que fazer com a boca desocupada,
O homem vai buscar mais duas bebidas e respira de alívio, entra um grupo de estudantes de arte
E sentam-se à janela a esboçar, uma delas com o cabelo azul-bebé, um deles olha para mim e sorri,
Vê-me de caneta na mão, uma loira regressa de fumar, está só, vai buscar um café, entra quem ela esperava,
Tem um canino encavalitado, não consegue agora conter os dentes em alvoroço, um dos pares vai-se embora,
Se calhar o nervosismo era aborrecimento dele, o pé finalmente parou, separam-se na rua sem beijo
E ela logo pega no telemóvel quando ele entra no carro, uma das estudantes está a deixar secar a tinta
Da ponta da caneta, está à espera que a mosca da inspiração lhe entre na boca, lembro-me de Bukowski,
De uns poemas de Bukowski, da visita num dia cinzento como este, já me começa a doer a mão,
A loira continua a fumar na varanda, a outra loira sorri de café nas mãos, a de cabelo azul continua
A procurar a mosca no ar, desta vez atravessaram no semáforo verde, agora uma miúda espera o próximo
Enquanto fala ao telemóvel e dois flocos de neve caem um de cada lado dela, a loira entra em casa,
A loira abre as pernas em direcção ao amigo, os estudantes de arte bocejam, menos dois que se engatam,
Descanso a mão para a punch line, a neve continua ridícula, os peões atravessam, dois miúdos sentam-se
Onde estava o par sem vontade, a loira acende a luz, muitos cigarros foram os últimos, muitos os primeiros,
Muitas passadeiras as últimas travesseias, muitas portas fechadas as últimas despedidas que se batem,
Muitos olhares que nunca mais neles, muitas vidas que se apagaram entre uma luz vermelha e verde,
No entanto, a vida continua, sempre e alguém se sentará nesta cadeira, ainda antes de ela arrefecer de mim.

Turku

14.04.2017


João Bosco da Silva
Andar Mal Das Tripas

Estou a uma semana de Portugal, ando fodido das tripas, só me sai merda,
Há quase duas semanas que não me sai um poema, bom ou mau,
Tenho fumado pouco e a contragosto, apanhei o vício dos dezasseis anos,
Qualquer dia volto a ficar invisível, até os olhos se me apagam,
Um bêbado cumprimenta-me e dilui-se no sofá e a empregada pergunta-lhe
Se está cansado, eu morro consumido por este tédio, farto de ir em primeira
Pela ribanceira abaixo, onde até as cabras se viam sem salto bailarino
E esta dor debaixo das costelas flutuantes, manias celestiais,
Num ping-pong que nunca aprendi a jogar, ora um lado, ora outro,
Ora medo, ora vazio, e tenho andado neste desporto de perdição
Há demasiado tempo, até o sofá em casa se ressente, anda farto de cu,
A cama não aguenta as manhãs azedas, parece que só nas madrugadas solitárias
De luz apagada não incomodo a mobília, às vezes lá ouço o queixume de uma sanita vizinha
A levar com uma mija depois da foda, ou daquelas meias sonâmbulas,
Depois, tudo só paredes outra vez, entretanto, lá fora, nem sei se chove se faz sol,
Só sei que estou a uma semana de uma caganeira valente.

14.04.2017

Turku


João Bosco da Silva